A escopolamina é uma substância que pertence à classe dos alcaloides tropânicos, um grupo de compostos químicos presentes numa variedade de plantas que possuem um longo histórico de uso pela humanidade, incluindo aplicações medicinais, enteógenas, como veneno etc1.
O grupo dos alcaloides tropânicos também engloba outra substância conhecidíssima pelas bandas da farmacologia: a tal da atropina. Esses alcaloides são encontrados principalmente em plantas da família Solanaceae, com destaque para os gêneros Atropa, Datura, Brugmansia, Duboisia, Hyoscyamus e Scopolia.
Algumas espécies dos gêneros Datura e Brugmansia, conhecidas popularmente como trombeta-de-anjo, trombeteira etc, são encontradas nas Américas, incluindo o Brasil.
Há relatos da utilização de plantas do gênero Brugmansia pelos povos andinos com diversos propósitos, incluindo fins terapêuticos, divinatórios, uso em rituais de iniciação e em outras práticas mágicas. Também há registros de uso do chá de Brugmansia suaveolens por tribos da região amazônica para alcançar visões especiais.

As intoxicações por trombeta-de-anjo relatadas na literatura científica costumam gerar episódios de alucinações visuais e sonoras, além de desfechos mais graves. Vejamos dois deles:
- Brasil, relato do médico Silva Lima, 18663: Dois escravizados, após ingerirem um chá de plantas do gênero Datura, queixaram-se de dor no estômago, vômitos e alucinações, as quais foram descritas como visões de objetos imaginários, fantasmas e ratos andando pelos cômodos;
- Austrália, relato de caso, 1985: Sete jovens viajaram de carro até um jardim, coletaram cerca de 50 flores de um arbusto (posteriormente identificado como sendo de Datura arborea) e ingeriram. Um dos membros do grupo chegou em casa um dia depois e seus familiares ligaram para a polícia preocupados com o paradeiro do seu irmão, que estava junto do grupo e ainda não havia retornado para casa. O jovem relatou, depois de recuperado, que estava sendo perseguido por árvores e por pessoas com armas e lanças. O corpo do irmão, de 20 anos, foi encontrado flutuando sem vida na água4. Os exames posteriores evidenciaram pupilas dilatadas e alterações no pulmão compatíveis com afogamento. Também foi encontrado material vegetal derivado de folhas e caules de Datura no estômago. Outro rapaz foi encontrado abraçado a uma árvore de eucalipto, aparentemente conversando com ela. As outras pessoas do grupo retornaram para casa.
Tenso, não é? E a pergunta que não quer calar é a seguinte: a escopolamina presente nos medicamentos que compramos por aí também pode causar alucinações? E a resposta é sim, mas é raro, e muita calma nessa hora.

A escopolamina pode induzir ou piorar o delirium em pacientes predispostos, especialmente os idosos, e as alucinações podem estar presentes nesse quadro clínico.
Em termos farmacológicos, a escopolamina é um antagonista competitivo dos receptores colinérgicos muscarínicos tanto centrais quanto periféricos; e os efeitos dela nessas duas instâncias são completamente distintos.
A nível periférico, a ação antimuscarínica da escopolamina produz um intenso efeito parassimpatolítico, com destaque para a midríase, diminuição das secreções salivares e pulmonares; e redução de espasmos musculares nos tratos gastrointestinal e urinário. Nos receptores muscarínicos centrais, a escopolamina, em doses terapêuticas, pode causar sonolência e amnésia em alguns indivíduos. Em casos de overdose, pode haver agitação, alucinações e coma.
Existem ao menos dois detalhes que merecem a nossa atenção: (1) as alucinações induzidas pela escopolamina não costumam ocorrer em doses terapêuticas, conforme foi mencionado acima; e (2) os medicamentos geralmente contém butilbrometo de escopolamina, e isso é importante5.

O butilbrometo de escopolamina é um derivado amônio quaternário da escopolamina com baixíssima lipofilicidade, o que limita a sua passagem pela barreira hematoencefálica. Assim, os efeitos da substância ficam majoritariamente restritos aos receptores muscarínicos periféricos, com pouca probabilidade de provocar reações adversas graves a nível central.
That’s all.
- Reportagens recentes têm descrito o uso do efeito amnésico da escopolamina para o cometimento de crimes, como roubo e assalto. Aqui há uma notícia do The Conversation sobre o assunto. ↩︎
- Esse é um trecho de um artigo da prof.ª Sônia Maria N. Pereira, da UFRJ, de uma edição de 1992 da revista Infarma obtido aqui. ↩︎
- O relato está presente em “Hallucinogenic plants” (1983), de Elisaldo Carlini, e é citado no trabalho Plant and Fungal Hallucinogens as Toxic and Therapeutic Agents. ↩︎
- O relato de caso não menciona exatamente em que local o corpo foi encontrado. ↩︎
- Em alguns países também é comercializado o hidrobrometo de escopolamina, um sal que ainda mantém a amina terciária, como é possível observar no PubChem. ↩︎
Referências
CARLINI, E. A.; MAIA, Lucas O. Plant and Fungal Hallucinogens as Toxic and Therapeutic Agents. In: CARLINI, Célia Regina; LIGABUE-BRAUN, Rodrigo (Orgs.). Plant Toxins. Dordrecht: Springer Netherlands, 2017. p. 37–80.
DAWSON, A. H.; BUCKLEY, N. A. Pharmacological management of anticholinergic delirium ‐ theory, evidence and practice. British Journal of Clinical Pharmacology, v. 81, n. 3, p. 516–524, 29 mar. 2016.
DE FEO, Vincenzo. The Ritual Use of Brugmansia Species in Traditional Andean Medicine in Northern Peru. Economic Botany, v. 58, n. sp1, p. S221–S229, dez. 2004.
GRYNKIEWICZ, G.; GADZIKOWSKA, M. Tropane alkaloids as medicinally useful natural products and their synthetic derivatives as new drugs. Pharmacological reports: PR, v. 60, n. 4, p. 439–63, 2008.
HAYMAN, J. Datura poisoning—The Angel’s Trumpet. Pathology, v. 17, n. 3, p. 465–466, 1985.
STRANO-ROSSI, S. et al. Scopolamine fatal outcome in an inmate after buscopan® smoking. International Journal of Legal Medicine, v. 135, n. 4, p. 1455–1460, 23 jul. 2021.
ULLRICH, S. F.; HAGELS, H.; KAYSER, O. Scopolamine: a journey from the field to clinics. Phytochemistry Reviews, v. 16, n. 2, p. 333–353, 9 abr. 2017.